domingo, 4 de fevereiro de 2018



Evangelização da criança: razões e finalidades

 


Astolfo Olegário de Oliveira Filho
De Londrina

I


É conhecida a posição de Kardec, o Codificador do Espiritismo, com relação ao ensino moral contido no Evangelho: "Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É o terreno em que todos os cultos podem encontrar-se, a bandeira sob a qual todos podem abrigar-se, por mais diferentes que sejam as suas crenças. Porque nunca foi objeto de disputas religiosas, sempre e por toda parte provocadas pelos dogmas. Se o discutissem, as seitas te­riam, aliás, encontrado nele a sua própria condenação, porque a maio­ria delas se apegou mais à parte mística do que à parte moral, que exige a reforma de cada um. Para os homens, em particular, é uma regra de conduta, que abrange todas as circunstâncias da vida privada e pú­blica, o princípio de todas as relações sociais fundadas na mais rigo­rosa justiça. É, por fim, e acima de tudo, o caminho infalível da fe­licidade a conquistar, uma ponta do véu erguida sobre a vida futura" (O Evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, item I).
Aí está, pois, a resposta à pergunta que dá título a este artigo. Evangelizar uma pessoa é ensinar-lhe o caminho que leva à paz, à harmonia e à felicidade possível no mundo em que vivemos. Mas... se é isto que nos ensina o Espiritismo, quando tal tarefa deve começar? A resposta a esta dúvida é também por demais conhecida:  na infância, esse período da existência corpórea assim conceituado por Emmanuel: "A juventude pode ser comparada a esperançosa saída de um barco para uma longa viagem. A velhice será a chegada ao porto. A infância é a preparação".

Os Espíritos Superiores nos ensinam que, encarnando-se com o objetivo de se aperfeiçoar, o Espírito, durante a infância, “é mais acessível às impressões que recebe, capazes de lhe auxiliarem o adiantamento, para o que devem contribuir os incumbidos de educá-lo". (O Livro dos Espíritos, item 383.) Mais adiante, aduzem eles que "as crianças são os seres que Deus manda a novas existências. Para que não lhes possam imputar excessiva seriedade, dá-lhes todos os aspectos da inocência. Julgando os seus filhos bons e dóceis, os pais lhes dedicam toda a afeição e os cercam dos mais minuciosos cuidados. A delicadeza da idade infantil os torna brandos, acessíveis aos conselhos da experiência e dos que devem fazê-los progredir. É na fase infantil que se lhes pode reformar o caráter e reprimir as suas más tendências. Esse é o dever que Deus confiou aos pais, missão sagrada pela qual terão de responder" (L.E., item 385). 

Reportando-se ao assunto, Emmanuel adverte: "O período infantil é o mais sério e o mais propício à assimilação dos princípios educativos. Até os sete anos, o Espírito ainda se encontra em fase de adaptação para a nova existência. Ainda não existe uma integração perfeita entre ele e a matéria orgânica. Suas recordações do plano espiritual são, por isto, mais vivas, tornando-se mais suscetível de renovar o caráter e estabelecer novo caminho. Passada a época infantil, atingida a maioridade, só o processo violento das provas rudes, no mundo, pode renovar o pensamento e a concepção das criaturas, porquanto a alma encarnada terá retomado o seu patrimônio nocivo do pretérito e reincidirá nas mesmas quedas, se lhe faltou a luz interior dos sagrados princípios educativos" ("O Consolador", pergunta 109). A razão é simples: é que, atingida a maioridade, o Espírito revela seu caráter real e individual, "retoma a sua natureza e se mostra qual era".

II

O lar será sempre, de acordo com o Espiritismo, a melhor escola para a preparação das almas encarnadas, como Santo Agostinho assevera no cap. 14, item 9, de "O Evangelho segundo o Espiritismo": "Oh! espiritistas, percebei o grande papel da Humanidade; compreendei que, quando produzis um corpo, a alma que nele se encarna vem do espaço para progredir. Cumpri com os vossos deveres e empregai o vosso amor em aproximar essa alma de Deus. Essa a missão que vos foi conferida e da qual recebereis a recompensa, se a cumprirdes fielmente", antecipando o que Emmanuel ensinaria mais tarde: "As noções religiosas, com a exemplificação dos mais altos deveres da vida, constituem a base de toda educação, no sagrado instituto da família" ("O Consolador", pergunta 108). 

Enfatizando a importância da preparação dos nossos filhos desde a primeira idade, Kardec escreveu: "É notável verificar que as crianças educadas nos princípios espíritas adquirem uma capacidade de raciocinar precoce que as torna infinitamente mais fáceis de serem conduzidas. Nós as vimos em grande número, de todas as idades e dos dois sexos, nas mais diversas famílias onde fomos recebidos e pudemos fazer essa observação pessoalmente. Isso não as priva da natural alegria, nem da jovialidade. Todavia, não existe nelas essa turbulência, essa teimosia, esses caprichos que tornam tantas outras insuportáveis. Pelo contrário, revelam um fundo de docilidade, de ternura e respeito filiais que as leva a obedecer sem esforço e as torna responsáveis nos estudos" ("Viagem Espírita em 1862", pág. 30).

O assunto foi tratado magistralmente pelo professor Humberto Mariotti em artigo publicado na Revista Educação Espírita, a respeito da Teoria Aparencial da Criança, um tema que Kardec já havia examinado na obra fundamental do Espiritismo ao ensinar que a criança aparece no mundo envergando a roupagem da inocência

A Teoria Aparencial da Criança mostra-nos que precisamos enfrentar a questão da educação dessas criaturas inocentes com maior realismo, porque, se elas são inocentes apenas na aparência e escondem sua realidade íntima nas formas físicas em desenvolvimento, manda a boa lógica que as tratemos com mais desembaraço. Partindo do fato aparencial, temos de encarar o desenvolvimento infantil como um processo psicológico de afloramento, não só de disposições culturais, mas também de conteúdos. Por trás da tábula rasa, da mente desprovida de qualquer conhecimento – uma idéia que nos veio do empirismo inglês – sabemos que existem as profundezas da memória espiritual, da consciência subliminar de que tratou Frederic Myers. Humberto Mariotti deixou isso bem claro em seu artigo. “Por trás de cada criança – escreveu ele – está o Ser com todos os seus graus de evolução palingenésica, pois para a Educação Espírita a infância é apenas uma etapa fugaz e cambiante e não uma condição permanente, espiritualmente considerada.”

III

 

De acordo com Frederic Myers, mais válida hoje do que em sua época, temos a mente supraliminar e a mente subliminar. Essa divisão corresponde aos conceitos de consciente e inconsciente da Psicanálise. Essa mente que se revela como algo mais profundo que a mente de relação é a que podemos chamar mente de profundidade. Suas categorias são muito mais numerosas e mais ricas do que as da mente de relação.

 
Nossa mente de relação, que estabelece nossa relação com o mundo e com os outros, repousa sobre uma espécie de patamar, abaixo do qual se encontra a nossa mente de profundidade. Foi por isso que Myers chamou a mente de relação de consciência supraliminar e a mente de profundidade de consciência subliminar. A primeira está sobre o limiar da consciência, a segunda está abaixo desse limiar. Quando sentimos um impulso inconsciente ou temos um pressentimento, houve uma invasão, segundo Myers, da mente de relação pelas correntes psíquicas do pensamento e da emoção da mente de profundidade. Há uma relação constante entre as duas formas mentais, que aumenta na proporção em que se desenvolve o ser. 

A educação espírita, propõe-nos Herculano Pires, não pode limitar-se à mente de relação, que só representa um momento do ser. Sabemos, graças à reencarnação, que o desenvolvimento do ser não é contínuo, mas descontínuo. Em cada existência terrena o ser desenvolve certas potencialidades, mas a lei de inércia o retém numa posição determinada pelos limites da própria cultura em que se desenvolveu. Com a morte corporal ele volta ao mundo espiritual e tem uma nova existência nesse mundo, onde suas percepções se ampliam permitindo-lhe compreender que a sua perfectibilidade não tem limites. Voltando a nova encarnação, ele pode reencetar com mais eficiência o desenvolvimento de sua perfectibilidade, mas, se não receber na vida terrena os estímulos necessários, poderá sentir-se novamente preso à condição da vida anterior na Terra, estacionando numa repetição de estágio. É isso o que se chama círculo vicioso da reencarnação. A evangelização da criatura humana desde o berço tem por função evitar que ela venha a cair nesse círculo. 

Dois exemplos bastam para ilustrar a tese acima expendida.
Jane Martins Vilela, na edição d’ O Imortal de setembro, reporta-se à manifestação de um Espírito que na sessão mediúnica declarou o seguinte: “Eu vim buscar ajuda, mas eu acho que não mereço”. “Errei demais, fiz maldade demais. Estive num navio negreiro, onde mantinha a ordem no local. Usava um chicote com pontas de chumbo e o descarregava sobre os negros. Eu achava que aquilo era o certo. Nem os considerava gente. Castigava demais, abusei no poder. Desencarnei e percebi meu erro. Depois reencarnei num subúrbio do Rio de Janeiro, esqueci minha vontade de melhorar. Tornei-me um marginal dos piores. Matei, incitei pessoas ao uso de drogas. Fui preso e fiquei muito tempo no presídio, até que morri baleado lá. Estive muito tempo sofrendo, até que vi a luz que me direcionou para esta Casa. Eu sei que errei, fracassei nessas existências. Agora eu estou com medo de reencarnar, porque aqui no mundo espiritual vejo que tenho que melhorar, mas é só eu ganhar um corpo de carne, reencarnar, e vou errar tudo outra vez.”

Ao ser orientado pelo doutrinador, o Espírito perguntou-lhe: “Por que não tive acesso a essas informações tão belas que você me traz?” “Nunca ninguém, enquanto vivi, me falou assim. Eu só ouvia que tinha que me vingar e fazer com os outros o que fizeram comigo. E me ensinaram a usar arma desde cedo.”

IV

André Luiz, no livro Ação e Reação, cap. 16, pp. 213 e seguintes, relata o caso Adelino Correia, o médium devotado ao bem que, no entanto, de­notava a condição de trabalhador em experiências difíceis. Adelino apresentava longa faixa de eczema na pele à mostra. Certa porção da cabeça, os ouvidos e muitos pontos da face exibiam placas verme­lhas, sobre as quais se formavam diminutas vesículas de sangue, ao passo que as demais regiões da epiderme surgiam gretadas, evidenciando uma afecção cutânea largamente cronicificada. Além disso, acanhado e tristonho, Adelino indicava tormentos ocultos a lhe dominarem a mente, embora seus olhos, maravilhosamente lúcidos, evidenciassem a marca da humildade. 

Adelino fora, no passado, Martim, que matara o próprio pai e agora expiava em dura provação o crime cometido. O pai e ele eram companheiros inseparáveis nos jogos, nos estudos, no serviço e na caça, até que, quando contavam, respectivamente, 43 e 21 anos de idade, o genitor resolveu casar-se com uma jovem de grande me­trópole, Maria Emília, na época com 20 anos. Martim, amado pelo pai e atraído pela jovem madrasta, passou a experimentar torturantes conflitos sentimen­tais. Ele, que até então se julgava o melhor amigo do pai, passou a detestá-lo, não lhe tolerando a posse sobre a mulher que desejava. Foi por isso que, auxiliado por dois capatazes de sua confiança e com aprovação da madrasta, ad­ministrou uma poção entorpecente no pai, que estava acamado naquele dia, provocando em seguida um incêndio no qual sua vítima indefesa veio a falecer. Morto o pai, Martim apode­rou-se-lhe dos haveres e tentou a felicidade junto com Maria Emí­lia, mas o genitor desencarnado, a inflamar-se em cólera, envolveu-o em nu­vens de fluidos inflamados, contra os quais o infeliz não possuía de­fesa... 

Arrependido e devotado, na esfera espiritual, aos serviços mais duros, Martim conquistara com o tempo apreciáveis lauréis que lhe permitiram voltar à esfera humana para iniciar o pa­gamento da larga dívida em que se onerou. Atirado a imensas dificulda­des materiais, desde cedo cresceu órfão de pai, mas, custodiado por ben­feitores da colônia, foi con­duzido a uma casa espírita, ainda muito jo­vem, onde a leitura dos princípios espíritas constituiu para ele re­cordações naturais dos en­sinamentos assimilados na colônia espiritual de onde viera.

Tanto num caso, o do Espírito fracassado e temeroso de novos tentames reencarnatórios, quanto na história de Adelino, observa-se a importância dos estímulos a que se refere Herculano Pires para que a vida de relação seja enriquecida pelos princípios apreendidos no passado e enfatizados por ocasião da chamada programação reencarnatória. No primeiro caso, o do sofredor citado por Jane, não se registrou estímulo algum de ordem superior. Mas no caso de Adelino, sim, e isso foi fundamental para a recuperação do criminoso arrependido.

extraído http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/estudosespiritas/principal.html

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